A VIRADA NO FAZER TEOLOGIA HOJE.


Há não muito tempo falava-se do conflito entre os dogmáticos e os exegetas. Devemos falara agora do conflito entre os dogmáticos e os hermeneutas? Isso não tem muito sentido, porque a hermenêutica não se tornou uma nova disciplina dentro do saber teológico. É toda a teologia dogmática que tende a se compreender como hermenêutica da Palavra de Deus.  Mas é incontestável que os termos “dogmática” e “hermenêutica” se tornaram, na prática concreta dos teólogos, indícios de duas tendências deferentes. Devemos mesmo falar de dois paradigmas do trabalho teológico. E não é errôneo dizer que uma revolução epistemológica os separa.
            O termo “hermenêutica” evoca  movimento de pensamento teológico que, pondo em relação viva o passado e o presente, expõe-se ao risco de interpretação nova do cristianismo para hoje. E alguns se perguntam seriamente se a teologia ainda tem poder de afirmação e de decisão na ordem da verdade. Será que o trabalho do teólogo não se esgota na manifestação do sentido, ou melhor, dos múltiplos sentidos  das diversas linguagem da fé? Não estaria o campo da teologia cristã entregue ao conflito das interpretações, e não se torna a hermenêutica muitas vezes a solução miraculosa para harmonizar as afirmações diferentes da Escrituras e do dogma ou as descontinuidades muito evidentes da tradição dogmática e teológica.
            A teologia medieval forjou o modelo da teologia-ciência no sentido de Aristóteles; a Reforma privilegiou o comentário da Escritura contra os recursos dialéticos da escolástica. A teologia dogmática se definia como um comentário fiel do dogma, isto é do que a Igreja sempre compreendera e ensina.
            O perigo para uma teologia segundo o modelo “dogmático” é que a relação com a verdade da mensagem seja determinada pela relação com a instituição hierárquica. Nesse caso a teologia corre o risco de se degradar em ideologia a serviço do poder dominador da Igreja.
O modelo “dogmático” de escritura teológica cedeu lugar a um modelo de escritura que podemos chamar de “hermenêutica”. Dizer que não significa que ela se tornou adogmática, mas que, antes de tudo, ela toma a sério  a historicidade de toda verdade, mesmo que seja a verdade revelada, como também a historicidade  do homem enquanto sujeito interpretante, e que ela se esforça por atualizar para hoje o sentido da mensagem cristã. Algumas proposições, os traços mais característicos dessa escritura teológica segundo o modelo “hermenêutico”.
 O ponto de partida da teologia como hermenêutica não é um conjunto de proposições imutáveis de fé, mas a pluralidade das escrituras compreendidas dentro do campo hermenêutico aberto pelo evento Jesus Cristo. A teologia como hermenêutica é, pois, sempre fenômeno de reescritura a partir de escrituras anteriores. Como um novo ato de interpretação do evento Cristo na base de correlação crítica entre a experiência cristã fundamental, testemunhada pela tradição, e a experiência humana de hoje.
            O antigo edifício de uma teologia escolar, que pretendia a universalidade para toda a Igreja, está ruindo. A teologia de tipo hermenêutica é necessariamente plural, porque ser inseparavelmente hermenêutica da palavra de Deus e hermenêutica da experiência histórica dos homens. É em função essa circularidade entre a leitura crente dos textos fundadores, que testemunham a experiência cristã originalmente, e a existência cristã de hoje, que pode nascer uma interpretação nova da mensagem cristã. Ora, essa existência cristã é cultural, social e politicamente condicionada pela situação histórica de cada Igreja. Constatamos, hoje, portanto, um pluralismo teológico “qualitativamente novo”.
            A teologia pode ser definida como o esforço para tornar mais inteligível e mais significante para hoje a linguagem já constituída da revelação. Essa linguagem já interpretativa. A teologia como nova linguagem interpretativa apóia nela para explicar as significações do mistério cristão em função do presente da Igreja e da sociedade. A teologia é, portanto, um caminho sempre inacabado para uma verdade mais plena. A linguagem teológica é necessariamente interpretativa à medida que visa à realidade do mistério de Deus a partir de significantes inadequados. E é próprio da teologia especulativa justamente transgredir os primeiros significantes da linguagem da revelação graça aos novos significantes que lhe são oferecidos por certo estado da cultura filosófica e cientifica. 
            A responsabilidade do teólogo consiste em mostrar a continuidade descontinuidade de tradição cristã, que é criativa de figuras históricas novas em respostas ao acontecimento permanente da verdade originária, que se revelou em Jesus Cristo.
            A teologia entendida como hermenêutica não é adogmática. Quero dizer que, se ela contesta o uso dogmatista de certa teologia escolástica, não pretende pôr em causa a legitimidade da teologia dogmática enquanto exposição rigorosa das verdades da fé. À medida que devemos renunciar ao mito de teologia universal, cada teologia particular está na obrigação de ser radicalmente cristã, isto é, deve manifestar o sim e o não ao Evangelho e levar a um julgamento pronunciado sobre o mundo.
            A teologia entendida como hermenêutica nos ajuda a respeitar a originalidade da verdade da revelação cristã, que é da ordem do testemunho e que não cessa de advir no presente da Igreja. Ela nos convida, particularmente, a não reduzirmos os significantes da revelação às suas expressões conceptuais e as não identificarmos pura e simplesmente a razão teológica com a razão especulativa.
            Por fim, a teologia hermenêutica corresponde a uma situação histórica da Igreja, na qual a defesa da verdade que nos foi confiada na revelção não está ligada à existência de uma teologia dogmática autoritária, que pretenderia o universal. Para lá do dogmatismo e da explosão anárquica, somos convidados a repensar como poderá ser uma unidade plural da verdade cristã que não comprometa a unanimidade na fé.
O teólogo é responsável diante de Deus e dos homens pela Palavra de Deus no seio dessa comunidade que é a Igreja, convocada e instituída por esta mesma Palavra de Deus.
A reinterpretação do dogma não consiste em declarar que o que era verdade ontem tornou-se falso hoje, mas em ressituar um dogma particular no conjunto da fé em compreender que ele pode exercer, hoje, função diferente da que exerceu quando formulado. A este respeito, devemos ter na maior consideração o princípio da “hermenêutica das verdades”, revalorizado pelo Vaticano II. Assim, no dialogo com as outras confissões cristãs, não deveríamos pôr em plano de igualdade o dogma de Éfeso sobre a maternidade divina e os dogmas mariais recente da imaculada conceição e da assunção.
Hoje, se não nos princípios, pelo menos na prática aceitou-se um pluralismo teológico de fato, em conseqüência da explosão da cultura. Independentemente da permanência da divisão das Igrejas cristãs, é necessário mesmo falar de pluralismo legítimo das confissões de fé, à medida que as Igrejas locais estão enraizadas em experiências históricas, culturais e sociológicas irredutíveis. Por isso, só pode causar inquietação constatar que o magistério se situa muito exclusivamente na linha tradicional da Igreja do Ocidente, quando o futuro da fé cristã se joga cada vez mais em outros continentes.
O teólogo deve ter espaço de liberdade para se entregar  a pesquisa exigente, sem outra preliminar que não seja o amor à verdade e a certeza de que o mistério de Cristo supera todos os enunciados que a Igreja possa emitir sobre ele. Ele se sente mais particularmente responsável pelo futuro da fé cristã perante a instancia crítica da razão humana. Isso significa que ele deve levar em conta não só o escândalo dos fracos, mas também o escândalo dos fortes. Significa  também que ele deve não só criticar as heresias progressistas, mas também denunciar as heresias conservadoras. Para isso, em nome da seriedade  de sua pesquisa, ele não pode deixar de manifestar a distancia que pode haver entre uma doutrina oficial e a confissão de fé cristã no que ela tem de mais autentico.
No começo, da fidelidade criativa do teólogo. A teologia é sempre tradição, no sentido que é precedida por uma origem que é dada, o evento Jesus Cristo, cujo sentido nenhum enunciado esgota. Ms ela é sempre, também, produção de linguagem inédita, porque essa origem ela só pode redizê-la historicamente e segundo uma interpretação criativa.