TEOLOGIA, IGREJA E CULTURA


Na expectativa de compreensão da “teologia da cultura” de Tillich, é importantíssimo percebermos como a Alemanha de então apreendia e conceituava a cultura. A negatividade que a cultura alemã deixou explicitar para Tillich, fez com que ele percebesse uma tendência derivada do idealismo que tentava dissolver a religião na cultura. Com efeito disso, a religião ficava inevitavelmente domesticada, tornando-se uma arma contra as outras culturas diferentes. Nesse caso, parece bastante explícito que os valores religiosos se confundiam com os interesses da burguesia vigente. Inconformado com tal visão, Tillich tenta mostrar, simultaneamente, a especificidade da religião e, sobretudo a autonomia da cultura. Segundo Carlos Calvani, Cultura (kultur) para os alemães “transformou-se num substituto da religião para as elites: trazia satisfação estética, tinha seus templos e ritos próprios e era repositório das realizações mais nobres e dos valores mais elevados do espírito humano”. Não obstante à visão idealista, Tillich vai elaborar a sua teologia, entendendo a religião como um setor exclusivo de uma cultura. Sendo assim, a teologia enquanto ciência própria da religião, terá como campo estudo a cultura como um todo. Essa nova percepção opõe-se a compreensão anterior que tinha por intento, apenas como campo de estudo os dogmas e peculiaridades eclesiásticas que estavam inseridos dentro de uma cultura. Desta forma, a teologia da cultura consiste em penetrar nas mais diversas expressões culturais, pois estas estão aptas à revelação. No escopo dessa visão, Tillich alcança uma diferença fundamental entre a teologia da igreja e a teologia da cultura. A primeira, é por sua natureza, conservadora e limitada – frágil. Ela sempre vai lutar por seus interesses, por isso, a preservação de dogmas, de tradições é fundamental para a continuidade da estrutura vigente. Destarte, a teologia da igreja será fechada e pouco aberta para as novas expressões culturais. A segunda, se encontra mais livre, porquanto está ligada ao movimento vivo da cultura – lugar onde os seres humanos se movem de forma mais ampla, com efeito, estará aberta a diversidade de expressões cultural que surgem com a história contínua dos humanos.
1. Nomos: Relação entre religião e cultura
Dentro do edifício teológico construído por Tillich, os conceitos: heteronomia, autonomia e teonomia são de extrema relevância. Esses conceitos respondem à questão do nomos, ou lei da vida. É impossível entendermos a teologia de Tillich, se não compreendermos as considerações feitas por ele, referentes ao nomos. Desta feita, com o interesse de penetrarmos no pensamento tillichiano, exporemos com mais detalhes a sua compreensão desta temática. A heteronomia caracteriza-se pelo uso da força, ou seja, ela vê o ser humano como sendo incapaz de viver segundo a razão universal, por isso, os indivíduos devem ser submetidos às leis que são superiores a si mesmos. Para Tillich, a heteronomia é a tentativa religiosa de dominação da criatividade cultural autônoma, a partir de fora. Ou seja, impõe à mente humana, leis religiosas ou seculares alienadas, uma vez que é simbolizada no “terror” exercido por igrejas e estados totalitários. Na autonomia, o ser humano tem a sua própria lei, já que, ele traz em si a razão universal. No entanto, a autonomia não representa o abandono do incondicional, todavia, assinala Tillich, é o princípio dinâmico da história. A autonomia só consegue sobreviver na medida em que se alimenta da tradição religiosa do passado, e dos restos de uma teonomia perdida. A teonomia será definida por Tillich, como a cultura na qual o supremo significado da existência flameja por meio de todas as formas finitas, tanto de pensamento como da própria ação. Uma cultura verdadeiramente teônoma não se opõe à autonomia nem a anula, porquanto a autonomia é lei que está atrelada aos seres humanos, porém, esta lei está baseada no fundamento divino. Não obstante a heteronomia, a autonomia e a teonomia responderem à questão da lei da vida, Tillich aplica essas categorias à relação entre religião e cultura. Para tanto, ele chama de autônoma a cultura empenhada em criar formas de vida pessoal e social sem qualquer referência a algo supremo e incondicional. Por sua vez, a cultura heterônoma submete as formas e as leis do pensamento e da ação ao critério das autoridades eclesiásticas, mesmo ao preço de quase destruir a racionalidade das pessoas e, por fim, teônoma é a cultura que expressa nas suas criações a preocupação suprema e o sentido transcendental como seu próprio fundamento transcendental. É justamente nesta perspectiva, que ele elabora a sua celebre frase: “a religião é a substância da cultura e a cultura, a forma da religião”.  A cultura está relacionada à forma – a religião está relacionada ao conteúdo. Forma é todo objeto passível de investigação racional e crítica. Ela constitui o objeto imediato das diferentes atividades culturais autônomas. O conteúdo é visto mais de maneira espiritual, ele não é alcançado por meio da visão objetiva racional, mas pela intuição. Concomitante, as formas, quase sempre querem ter por escopo a absolutização de suas características, esquecendo com isso, o princípio básico de que em toda e qualquer cultura reside algo de incondicionado. Deste modo, para Tillich, a religião dá sentido e, sobretudo seriedade à cultura.  Isto é, a religião como preocupação última, é a substância que confere significado a cultura e a cultura é a totalidade das formas em que se expressa a preocupação fundamental e é o que constitui a religião. A igreja, para Tillich, é também um grupo sociológico, imerso nos conflitos da existência, portanto, está sujeita a uma tensão quase irresistível: a de se tornar heterônoma e de suprimir a crítica autônoma.
Esta característica é bastante evidente na história da igreja “cristã” no decorrer dos séculos. Em linhas gerais, Cipriano  padronizou o papel do bispo na grande Igreja e tornou-o absolutamente essencial para a eclesiologia da época do cristianismo católico e ortodoxo. Segundo alguns relatos, é dele que vem a expressão: “fora da igreja não há salvação”. A importância de Cipriano na história da igreja e, sobretudo da teologia está no vínculo que ele estabeleceu entre eclesiologia e soteriologia. Essa amarração passou a girar em torno do ofício do bispo, resultando numa exclusividade da salvação por parte da Igreja. Cipriano foi um dos primeiros pais da igreja a afirmar, de modo claro e inequívoco, a regeneração batismal, a idéia de que a salvação ocorre na ocasião e por meio do batismo na água, quando é devidamente administrado por um bispo ordenado ou por seu agente autorizado, o sacerdote. Na teologia de Cipriano, quanto à salvação, vemos o início de um “sistema penitencial” plenamente formado. Séculos mais tarde, manuais inteiros de penitências, detalhando atos específicos de castigo, para todo tipo de pecado, tornando-se um padrão dentro das igrejas ocidentais.
A exclusividade da salvação exigida pela Igreja, domesticou a religião à cultura ocidental, causando um tipo de medo na vida dos seres humanos, haja vista, a não expressão da liberdade individual. Quiçá, Nietzsche, estivesse certo quando disse: “na luta com animal, torná-lo doente é talvez o único meio de enfraquecê-lo. A igreja compreendeu isso perfeitamente: ela perverteu o homem, tornou-o fraco – mas ela reivindicou o mérito de tê-lo tornado melhor”.
Contrastando esta postura heterônoma, Tillich, em sua Teologia Sistemática, estabelece alguns princípios referentes à relação entre religião e cultura. O primeiro, é encontrado na liberdade do Espírito. Nesta construção, o Espírito Divino não está preso à religião, objetivando com isso exercer um impacto sobre a cultura. Aliás, “este ‘erro’ é na verdade a identificação demoníaca das igrejas com a Comunidade Espiritual e é uma tentativa de limitar a liberdade do Espírito pela reivindicação absoluta de um grupo religioso”. O segundo princípio, é o que Tillich vai chamar de “convergência do sagrado e do secular”. Este princípio será mais bem trabalhado na parte em que analisaremos a inter-relação entre o sagrado e o secular. O terceiro e último princípio, Tillich vai denominar de “pertinência essencial mútua de religião e cultura”. “A religião não pode se expressar nem mesmo num silêncio significativo, sem a cultura, da qual ela assume todas as formas de expressão [...] a cultura perde sua profundidade sem a ultimacidade daquele que é último”.
2. Contexto cultural e a irrupção do incondicional
A concepção de um fundamento divino em todas as culturas, ainda evoca uma certa confusão nos meio religioso cristão. De acordo com Tillich, a visão do cristianismo primitivo em relação a outras religiões era determinada pela idéia do logos. Os padres da igreja decretaram a presença universal do logos, o verbo, o princípio da automanifestação divina em todas as religiões e culturas.  Isto é, o contexto cultural era o lugar em que acontecia a irrupção do incondicionado. Por isso, para Tillich, o cristianismo primitivo não tinha por fito considerar-se a si mesmo como uma religião radical-exclusiva, mas como uma religião onicompreensiva.
Em sua Teologia da Cultura, Tillich admite que o seu problema teológico fundamental surgiu ao aplicar a relação do absoluto, implícito na idéia de Deus, a relatividade da religião humana. Destarte, segundo ele, o dogmatismo religioso, incluindo a ortodoxia protestante, toma corpo quando uma religião histórica se ampara detrás da validez incondicional do divino, quando um livro, pessoa, comunidade, instituição ou doutrina reclama autoridade absoluta e procura submissão de todas as outras realidades.  À atitude de absolutização de algo finito, Tillich vai denominar de demoníaco, pois: “o demoníaco consiste em algo finito e limitado que tem sido investido de magnitude de infinito eles se opõem de tal maneira que a consciência humana fica entre os dois”.  No entanto há um limite entre religião e cultura. A religião não pode renunciar o absoluto, em conseqüência, ao idioma universal expressado na idéia de Deus e não deve permitir-se chegar a ser um domínio especial dentro da cultura ou ocupar uma posição adjacente a esta e; a cultura não pode permitir que se sacrifique a verdade e a justiça em nome do absoluto religioso. Deus é um símbolo que deve aparecer e ser interpretado dentro de um contexto cultural, porém jamais será esgotado, porquanto está muito além da cultura.
2.1. Revelação: transparência e mistério
De acordo com Tillich, a revelação é expressa numa situação concreta, ou seja, ela acontece na realidade histórica, isto porque “a negação da contemporaneidade põe em perigo o elemento transcendente da revelação”.  Isto é, quando a revelação não se faz contemporânea do ser humano concreto, ela passa a ser dependente dele. Ora, essa concepção faz com que o indivíduo seja o meio de atingi-la, contudo essa não é uma tarefa humana. Assim, para Tillich, aquele que é o Cristo é contemporâneo ou não poderá ser o Cristo. Essa forma de ver a revelação é importante porque a encarnação não está presa a nem uma figuração de Jesus construída pelas comunidades no decorrer dos séculos, porquanto as figuras de Jesus foram lidas e interpretadas várias vezes de acordo com o interesse de grupos. Tillich entende a revelação e, sobretudo a encarnação de modo totalmente diferente, pois tenta desprender-se de tais imagens para mostrar que a cruz é a quebra radical de todas as figuras concretas. Concomitantemente, a revelação sempre terá um caráter misterioso, haja vista a impossibilidade do ser humano alcançar a sua compreensão plena. Deste modo, ela sempre revelará algo, todavia ocultará características que não podem ser apreendidas pelo espírito humano. Desta maneira, a revelação é uma manifestação especial que remove o véu de algo que está escondido.  Todavia, o mistério permanece sempre enigmático, posto que haveria um estrago da sua própria natureza se ele perdesse seu caráter misterioso.
Mistério em sentido próprio, segundo Tillich, é derivado de muein, que significa “fechar os olhos”, ou “fechar a boca”. Os olhos são fechados porque o genuíno mistério transcende o ato de ver e a boca é fechada porque é impossível expressar a experiência do mistério em linguagem comum. Por isso, se o “mistério” for visto e compreendido, fundamentalmente, ele deixa de ser sagrado e entra na esfera do profano, porquanto “o que é essencialmente misterioso não pode perder seu caráter misterioso, mesmo quando é revelado”.  A revelação não dissolve o mistério em conhecimento, tampouco existe revelação absolutamente plena. Porém ela mostra e oculta ao mesmo tempo, apesar disso, ela torna-se muito mais aguçada quando toca no corpo dos seres humanos. Este toque pode acontecer nas mais variadas expressões culturais.
Revelação é a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última. O mistério revelado é de preocupação última para nós porque é o fundamento do nosso ser. Na história da religião, eventos revelatórios sempre foram descritos como abaladores, transformadores, exigentes, significativos de forma última.
2.2. O incondicional e a finitude  humana
Immanuel Kant pensando a respeito do incondicionado diz: “sem dúvida, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado”.  A teologia de Tillich vai ser marcada por este conceito. O termo incondicional, para Tillich, parece referir-se ao elemento presente em qualquer experiência religiosa responsável, pois que, todos o símbolos religiosos do divino expressam certa afirmação incondicional.  No entanto, o incondicional, para Tillich, não se trata de um ser, mas de uma qualidade, pois “incorreríamos em crasso erro se entendêssemos o incondicional como um ser cuja existência pudesse ser discutida. Só falará a respeito da ‘existência do incondicional’ quem não entender o sentido do termo”. Não distante a isso, é relevante entender a interpelação entre o incondicionado e a criatura finita. Doravante, é de suma importância alcançar o ser humano não apenas com características finitas, todavia também com aspectos de infinitude. Esta abertura ao infinito possibilita homens e mulheres transcenderem a realidade concreta de forma extraordinária. Assim, as pessoas sempre terão a capacidade de superar uma dimensão concreta, uma vez que, mesmo estando inseridas num mundo concreto, elas não estão presas a este mundo, mas muito pelo contrário, elas sempre vão transformá-lo a partir de conceitos universais.
Para Tillich, o contexto cultural é meio potencial, através do qual o divino irrompe. Ele fala de Deus como o incondicionado, isto é, a realidade última. Deus como o incondicionado é a fonte de sentido que anima e sustenta toda e qualquer cultura. Deus está fora das categorias humanas. É dessa forma que a cultura, segundo Tillich, alcança sua máxima expressão, quando a existência humana se inclui em sua finitude e sua busca do infinito dentro do marco de uma forma completa e autônoma, já que, a religião em sua expressão mais alta deve incluir a forma autônoma.  A preocupação última está relacionada com a preocupação humana em relação a sua existencialidade. Para Haidi Drebes: “tudo o que determina o seu destino último, o infinito, o seu verdadeiro ser e a totalidade universal da qual faz parte, são motivos de preocupação última”. Por isso, é no contexto cultural que o ser humano pergunta pela sua existencialidade e é também neste ambiente que Deus aparece em sua forma reveladora. A revelação acontece a partir do encontro finito e infinito. Este encontro experimental faz com que o ser humano sinta a transcendência e o faz descobrir que a sua realidade concreta não traz em si todas as respostas as suas perguntas existenciais, desta forma, para Tillich, o finito quer repousar no infinito, pois no infinito, o ser humano vê a sua própria realização, entretanto, nesta mesma dinâmica o ser humano enfrenta simultaneamente a distância infinita entre o finito e o infinito.
2.3. O sagrado e o secular
A tentativa de separar o sagrado das manifestações seculares sempre esteve em evidência dentro da conjectura religiosa cristã. A construção que privilegia a esfera espiritual vê “o mundo” como algo profano e causador de atrofias na vida religiosa. Em sua Teologia da Cultura, Tillich tenta mostrar que as categorias seculares e religiosas podem conviver sem maiores conflitos. Aliás, para ele, a religião não traz consigo a absolutização da preocupação última, pois tal concepção distorceria o próprio conceito de incondicionado. Assim, “a preocupação última da religião não constitui aquilo que deve ser a nossa preocupação última”. Desta feita, se a religião é o estado de achar-se dominada por uma preocupação última, este estado não pode restringir-se a um domínio especial, haja vista, segundo Tillich, que o caráter incondicional dessa preocupação implica no fato de que este estado tem que atribuir a todo o momento de nossa vida, todo espaço e todo domínio, porquanto “o universo é o santuário de Deus”. Tal edificação tenta quebrar a dicotomia entre mundo secular e mundo religioso, isto é, o incondicionado pode ser percebido fora da esfera religiosa, pois que a preocupação última atinge todos os seres humanos.
A preocupação última, para Tillich, está presente mesmo em meio às inquietações triviais da vida das pessoas, visto que, não existe uma dicotomia, todavia, o mundo religioso e o mundo secular são incluídos um dentro do outro. Este conceito vai de encontro à percepção de que o incondicionado só pode ser encontrado nos círculos eclesiásticos e mostra que não existe a dicotomia entre mundo secular e o mundo sagrado, porém um necessita do outro para existir.
Entretanto, percebe Tillich, que o elemento secular e o elemento religioso buscam a independência, ou seja, querem tornar-se donos dos seus próprios domínios, sendo assim, a tentativa de separação é constante, mas nem o religioso deve ser absorvido pelo secular, como pretende o secularismo, nem o secular deve ser absorvido pelo religioso, como o imperialismo eclesiástico anseia. Nesse sentido, não há criação cultural sem que se expresse em uma preocupação última, pois em cada uma das funções das criatividades culturais, palpita uma preocupação última. Desde modo, religião e cultura se interpelam, não estão uma ao lado da outra, pois se assim o fosse haveria diversas analogias. Isso, sem dúvida, para Tillich, não significa que o secular como tal seja espiritual, mas constitui que ele está aberto ao impacto do Espírito, mesmo sem mediação de uma igreja. Assim, o Espírito tem a liberdade de usar formas anti-religiosas, com o intuito de modificar não apenas a cultura secular, mas sobretudo a igreja.
Portanto, o secular torna-se um tipo de corretivo necessário do sagrado, quando as igrejas reivindicam a exclusividade da realidade última. O mais belo de tudo é que, “o secular é levado à união com o sagrado, uma união que na verdade é uma reunião, porque o sagrado e o secular se pertencem mutuamente”. Ou seja, é impossível a existência do sagrado sem o secular. Ele precisa, necessariamente dessa categoria para existir.
Conclusão
Segundo Etienne Higuet: “a teologia da cultura coloca uma série de questões ineludíveis à reflexão dogmática atual, como o significado da autonomia humana, o sentido da história, o significado teológico da civilização capitalista industrial urbana e da sua crise”. Talvez, aqui, esteja um ponto de partida para a compreensão menos egoístas de certos grupos religiosos que se consideram os donos da verdade. Criadores de um discurso extremante intolerante, causador de culpas e, sobretudo de medo na vida de muitos indivíduos.
Penso que o uso do medo, para preservação de qualquer tipo de religião, seja a sua representação mais frágil. Isto porque, ele (o medo) gera uma conduta fugitiva, levando os indivíduos a uma inevitável prisão de suas próprias fantasias. A preservação de doutrinas heterônomas que castram a liberdade dos humanos, caracterizam uma religião extremamente indiferente as reais necessidades dos humanos. A religiosidade construída sobre a punição castra o direito e a liberdade de pensamento e, sobretudo castra a liberdade das pessoas agirem, sem ter medo de passar uma eternidade queimando no fogo do inferno, como muitos “espiritualistas” acreditam. Talvez, a punição seja o mais “diabólico” tipo de ameaça que uma religião pode construir para oprimir e castrar a liberdade dos seus fiéis. Por isso, são criadas fogueiras, infernos, prisões..., que matam homens e mulheres, antes mesmo destes viverem. Tal heteronomia é mantenedora de um sistema completamente desumano e totalitário. Este sistema ditatorial remete-nos ao positivismo do século XIX, que tinha como lema: “os seres humanos não precisam de idéias para discutir, mas de ordem para cumprir, pois onde houver ordem há progresso”. Para Rubem Alves, “até mesmo os nomes de Deus e os símbolos sagrados podem ser usados pelo interesse da opressão”. Deste modo, os símbolos sagrados podem ser manipulados. Aliás, isso tem sido muito comum no decorrer da história, como bem observou Pierre Bourdieu: “as interações simbólicas que se instauram no campo religioso devem sua forma específica à natureza particular dos interesses que aí se encontra em jogo”. Assim sendo, é totalmente proibido levantar a questão de sua autenticidade. Em épocas anteriores, a “presunção” do questionamento e da dúvida era punida com os mais severos castigos, e ainda hoje, a sociedade olha com desconfiança para qualquer tentativa de levantar novamente a questão, pois o ser humano precisa obedecer. Indubitavelmente, o resgate da teologia da cultura de Tillich pode trazer uma nova realidade para o povo sofrido e, sobretudo escravizado por atitudes desumanas de certas tradições religiosas. A cultura teônoma ignora o exclusivismo religioso e mostra que o incondicionado pode ser concebido por qualquer cultura, pois ele está sempre ativo e espera ser descoberto além das fronteiras da comunidade eclesial. Descobri-lo é tarefa da teologia da cultura, que tem o dever de identificar o conteúdo religioso em todas as esferas e criações culturais. De fato, Tillich estava certo quando dizia que a história da religião e da cultura é a história de permanentes deformações demoníacas da revelação e de confusões idólatras entre Deus e o homem. Portanto: A imposição de qualquer cultura religiosa sobre dissidentes ou participantes de outras culturas nunca terá caráter final não obstante pretender alcançar os corações humanos, mas sempre será provisória e condicionada, porque apenas aproveita em seu benefício o caráter supremo da religião.