DOUTRINA DE CRISTO (Cristologia)



DOUTRINA DE CRISTO (Cristologia)

Podemos sintetizar da seguinte maneira o ensino bíblico acerca da pessoa de Cristo: Jesus Cristo foi plenamente Deus e plenamente homem em uma só pessoa e assim o será para sempre.

A. A humanidade de Cristo

1. O nascimento virginal.

Quando falamos na humanidade de Cristo, convém iniciar com uma consideração do nascimento virginal de Cristo. As Escrituras afirmam claramente que Jesus foi concebido no ventre de sua mãe, Maria, por obra miraculosa do Espírito Santo e sem um pai humano.

2. Fraquezas e Limitações Humanas

a. Jesus possuía um corpo humano.

 O fato de que Jesus possuía um corpo humano exatamente como o nosso é visto em muitas passagens das Escrituras. Ele nasceu assim como nascem todos os bebês humanos (Lc 2.7). Ele passou da infância para a maturidade assim como crescem todas as outras crianças: “Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2.40).

b. Jesus possuía uma mente humana.

O fato de Jesus ter crescido em sabedoria (Lc 2.52) significa que ele passou por um processo de aprendizado assim como acontece com todas as outras crianças — ele aprendeu a comer, a falar, a ler e a escrever, e a ser obediente a seus pais (veja Hb 5.8). Esse processo normal de aprendizado fazia parte da genuína humanidade de Cristo.

c. Jesus possuía alma humana e emoções humanas.

Vemos várias indicações de que Jesus possuía alma humana (ou espírito). Logo antes de sua crucificação, ele disse: “Agora, está angustiada a minha alma” (Jo 12.27). João escreve um pouco depois: “Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito” (Jo 13.21). Em ambos os versículos a palavra angustiar representa o termo grego tarassÜ, palavra muitas vezes empregada em referência a pessoas ansiosas ou que de repente são surpreendidas por um perigo.

d. As pessoas próximas de Jesus consideravam-no apenas humano.

Mateus registra um incidente assombroso no meio do ministério de Jesus. Ainda que Jesus tivesse ensinado por toda a Galiléia, “curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo”, de modo que “numerosas multidões o seguiam” (Mt 4.23-25), quando chegou à própria cidade de Nazaré, o povo que o conhecia havia muitos anos não o recebeu  (Mt 13.53-58).
3. Impecabilidade. Ainda que o Novo Testamento seja claro em afirmar que Jesus era plenamente humano exatamente como nós, também afirma que Jesus era diferente em um aspecto importante: ele era isento de pecado e jamais cometeu um pecado durante sua vida. Alguns objetam que se Jesus não pecou, então não era verdadeiramente humano, pois todos os humanos pecam. Mas os que fazem tal objeção simplesmente não percebem que os seres humanos estão agora numa situação anormal. Deus não nos criou pecaminosos, mas santos e justos. Adão e Eva no jardim do Éden eram verdadeiramente humanos antes de pecar, e nós agora, apesar de humanos, não nos conformamos ao padrão que Deus deseja que preenchamos quando nossa humanidade plena, impecável, for restaurada.

4. Jesus poderia ter pecado?

Às vezes levanta-se esta questão: “Cristo podia ter pecado?” Alguns defendem a impecabilidade de Cristo, entendendo por impecável “não sujeito a pecar”. Outros objetam que se Jesus não fosse capaz de pecar, suas tentações não teriam sido reais, pois como uma tentação seria real, se a pessoa que estivesse sendo tentada não fosse mesmo capaz de pecar? Para responder a essa pergunta, precisamos distinguir, por um lado, o que as Escrituras afirmam claramente e, por outro lado, o que é mais uma inferência de nossa parte.
(1)         As Escrituras afirmam claramente que Cristo jamais pecou de fato (veja acima). Não deve haver nenhuma dúvida a esse respeito em nossa mente.
(2)         Elas também afirmam que Jesus foi tentado e que as tentações foram reais (Lc 4.2). Se cremos na Bíblia, precisamos insistir que Cristo foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15).
(3)         Também precisamos afirmar com as Escrituras que “Deus não pode ser tentado pelo mal” (Tg 1.13). Mas aqui a questão torna-se difícil: se Jesus era plenamente Deus e também plenamente humano (e vamos argumentar adiante que as Escrituras ensinam isso várias vezes e de maneira clara), então não somos obrigados também a afirmar que (em algum sentido) Jesus também “não pode ser tentado pelo mal”?

5. Por que era necessário que Jesus fosse plenamente humano?

Quando João escreveu sua primeira epístola, circulava na igreja um ensino herético, segundo o qual Jesus não era homem. Essa heresia tornou-se conhecida como docetismo.  Essa negação da verdade acerca de Cristo era tão séria que João podia dizer que se tratava de uma doutrina do anticristo: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo” (1Jo 4.2-3).
a. Para possibilitar uma obediência representativa. Conforme observamos no capítulo acima sobre as alianças entre Deus e o homem,  Jesus era nosso representante e obedeceu em nosso lugar naquilo que Adão falhou e desobedeceu. Vemos isso nos paralelos entre a tentação de Jesus (Lc 4.1-13) e a ocasião da prova de Adão e Eva no jardim (Gn 2.15–3.7). Também reflete-se claramente na discussão de Paulo sobre os paralelos entre Adão e Cristo, na desobediência de Adão e na obediência de Cristo (Rm 5.18-19).
b. Para ser um sacrifício substitutivo. Se Jesus não tivesse sido homem, não poderia ter morrido em nosso lugar e pago a penalidade que nos cabia. O autor de Hebreus nos diz: “Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão. Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo” (Hb 2.16-17; cf. v. 14).
c. Para ser o único mediador entre Deus e os homens. Porque estávamos alienados de Deus por causa do pecado, necessitávamos de alguém que se colocasse entre Deus e nós e nos levasse de volta a ele. Precisávamos de um mediador que pudesse representar-nos diante de Deus e que pudesse representar Deus para nós. Só há uma pessoa que preencheu esse requisito: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). Para cumprir essa função de mediador, Jesus tinha de ser plenamente homem e plenamente Deus.
d. Para cumprir o propósito original do homem de dominar a criação. Como vimos em nossa discussão sobre o propósito para o qual Deus criou o homem,  Deus colocou o ser humano sobre a terra para subjugá-la e dominá-la como representante divino. Mas o homem não cumpriu esse propósito, pois caiu em pecado. O autor de Hebreus percebe que Deus pretendia que tudo fosse sujeitado ao homem, mas reconhece: “Agora, porém, ainda não vemos todas as coisas a ele sujeitas” (Hb 2.8). Então, quando Jesus veio como homem, foi capaz de obedecer a Deus e, assim, teve o direito de dominar a criação como homem, cumprindo o propósito original de Deus ao colocar o homem sobre a terra. Hebreus reconhece isso quando diz que agora “vemos [...] Jesus” em posição de autoridade sobre o universo, “coroado de glória e de honra” (Hb 2.9; cf. a mesma frase no v. 7).
e. Para ser nosso exemplo e padrão na vida. João nos diz: “... aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (1Jo 2.6), e nos lembra que “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” e que essa esperança de futura conformidade com o caráter de Cristo confere mesmo agora pureza moral cada vez maior à nossa vida (1Jo 3.2-3). Paulo nos diz que estamos continuamente sendo “transformados [...] na sua própria imagem” (2Co 3.18), avançando, assim, para o alvo para o qual Deus nos salvou: sermos “conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29). Pedro nos diz que, especialmente no sofrimento, temos de considerar o exemplo de Cristo: “pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos” (1Pe 2.21).
f. Para ser o padrão de nosso corpo redimido. Paulo nos diz que quando Jesus ressuscitou dos mortos, ressuscitou num novo corpo “na incorrupção [...] ressuscita em glória [...] ressuscita em poder [...] ressuscita corpo espiritual” (1Co 15.42-44). Esse novo corpo ressurreto que Jesus possuía quando ressurgiu dos mortos é o padrão do que será nosso corpo quando formos ressuscitados dos mortos, porque Cristo é “as primícias” (1Co 15.23) — uma metáfora agrícola que compara Cristo à primeira amostra da colheita, que demonstra como será o outro fruto daquela colheita.
g. Para compadecer-se como sumo sacerdote. O autor de Hebreus lembra-nos de que “naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18; cf. 4.15-16). Se Jesus não tivesse existido na condição de homem, não teria sido capaz de conhecer por experiência o que sofremos em nossas tentações e lutas nesta vida. Mas porque viveu como homem, ele é capaz de compadecer-se mais plenamente de nós em nossas experiências. 

6. Jesus será um homem para sempre.

Jesus não abandonou a natureza terrena após sua morte e ressurreição, pois apareceu aos discípulos como homem após a ressurreição, até com as cicatrizes dos cravos nas mãos (Jo 20.25-27). Ele possuía carne e ossos (Lc 24.39) e comia (Lc 24.41-42). Posteriormente, quando conversava com os discípulos, foi levado ao céu, ainda em seu corpo humano ressurreto, e dois anjos prometeram que ele voltaria do mesmo modo: “Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11).

B. A DIVINDADE DE CRISTO

Para completar o ensino bíblico acerca de Jesus Cristo, precisamos declarar não só que ele era plenamente humano, mas também plenamente divino. Embora a palavra não ocorra de maneira explícita na Bíblia, a igreja tem empregado o termo encarnação para referir-se ao fato de que Jesus era Deus em carne humana. A encarnação foi o ato pelo qual Deus Filho assumiu a natureza humana. A comprovação bíblica da divindade de Cristo é bem ampla no Novo Testamento. Vamos examiná-la sob várias categorias.

1. Alegações bíblicas diretas.

Nesta seção, examinamos declarações diretas da Bíblia de que Jesus é Deus ou de que é divino.
a. A palavra Deus (theos) atribuída a Cristo. Apesar de a palavra theos, “Deus”, ser em geral reservada no Novo Testamento para Deus Pai, há algumas passagens em que é também empregada em referência a Jesus Cristo. Em todos esses trechos, a palavra “Deus” é empregada com um sentido denso em referência àquele que é Criador do céu e da terra, o governante de tudo.
b. A palavra Senhor (kyrios) atribuída a Cristo. Às vezes a palavra Senhor (gr. kyrios) é empregada simplesmente como tratamento respeitoso dispensado a um superior (veja Mt 13.27; 21.30; 27.63; Jo 4.11). Às vezes pode simplesmente significar “patrão” de um servo ou escravo (Mt 6.24; 21.40). Ainda assim, a mesma palavra é também empregada na Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento, de uso comum na época de Cristo) como uma tradução do hebraico yhwh, “Javé”, ou (conforme traduzido com freqüência) “o Senhor” ou “Jeová”.
c. Outras fortes alegações de divindade. Além dos usos da palavra Deus e Senhor em referência a Cristo, temos outras passagens que defendem com vigor a divindade de Cristo. Quando Jesus disse a seus opositores judeus que Abraão vira seu dia (o dia de Cristo), eles o contestaram: “Ainda não tens cinqüenta anos e viste Abraão?” (Jo 8.57). Aqui uma resposta suficiente para provar a eternidade de Jesus teria sido: “Antes que Abraão fosse, eu era”. Mas não foi isso que Jesus disse. Antes, ele fez uma declaração muito mais estarrecedora: “Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, eu sou (Jo 8.58).

2. Sinais de que Jesus possuía atributos de divindade.

Além das afirmações específicas da divindade de Jesus vistas nas muitas passagens citadas acima, vemos muitos exemplos de atos na vida de Jesus que indicam seu caráter divino.
Jesus  demonstrou sua onipotência quando acalmou a tempestade no mar com uma palavra (Mt 8.26-27), multiplicou os pães e peixes (Mt 14.19) e transformou a água em vinho (Jo 2.1-11). Alguns podem objetar, dizendo que esses milagres só mostraram o poder do Espírito Santo agindo por intermédio dele, assim como o Espírito Santo poderia agir por meio de qualquer outro ser humano e, assim, isso não comprova a divindade de Jesus.

3. Teria Jesus desistido de algum atributo enquanto estava na terra (a teoria da kenosis)?

Paulo escreve aos filipenses:
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana... (Fp 2.5-7).
Partindo desse texto, alguns teólogos da Alemanha (a partir de 1860-1880) e da Inglaterra (a partir de 1890-1910) passaram a defender uma idéia de encarnação que jamais fora defendida na história da igreja. Essa nova idéia foi chamada “teoria da kenosis”, e a posição geral representada por ela foi chamada “teologia kenótica”.

5. Seria a doutrina da encarnação “compreensível” hoje?

Ao longo de toda a história levantam-se objeções ao ensino neotestamentário da plena divindade de Cristo. Um ataque recente a essa doutrina merece menção aqui por ter criado grande controvérsia, pois os que contribuíram para o texto eram todos líderes eclesiásticos de renome na Inglaterra. O livro era chamado The Mith of God Incarnate [o mito do Deus encarnado], editado por John Hick (London: SCM, 1977). O título apresenta a tese do livro: a idéia de que Jesus era “Deus encarnado” ou “Deus vindo em carne” é um “mito” — uma história que talvez se adequasse à fé das gerações anteriores, mas que não merece crédito hoje.

 6. Por que é necessária a divindade de Jesus?

Na seção anterior alistamos alguns motivos pelos quais era necessário que Jesus fosse plenamente humano para obter nossa redenção. Aqui cabe reconhecer que é também crucialmente importante insistir na plena divindade de Cristo, não só porque ela é ensinada de maneira clara nas Escrituras, mas também porque
(1)        só alguém que fosse Deus infinito poderia arcar com toda a pena de todos os pecados de todos os que cressem nele — qualquer criatura finita não seria capaz de arcar com tal pena;
(2)        a salvação vem do Senhor (Jn 2.9 arc), e toda a mensagem das Escrituras é moldada para mostrar que nenhum ser humano, nenhuma criatura, jamais conseguiria salvar o homem — só Deus mesmo poderia; e
(3)        só alguém que fosse verdadeira e plenamente Deus poderia ser o mediador entre Deus e homem (1Tm 2.5), tanto para nos levar de volta a Deus como também para revelar Deus de maneira mais completa a nós (Jo 14.9).
Assim, se Jesus não é plenamente Deus, não temos salvação e, por fim, nenhum cristianismo. Não é por acaso que ao longo da história os grupos que abandonaram a crença na plena divindade de Cristo não têm permanecido muito tempo na fé cristã, desviando-se logo para um tipo de religião representada pelo unitarismo nos Estados Unidos e em outros lugares. “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai como o Filho” (2Jo 9).

C. A ENCARNAÇÃO: DIVINDADE E HUMANIDADE NA ÚNICA PESSOA DE CRISTO

O ensino bíblico sobre a plena divindade e plena humanidade de Cristo é tão amplo que se vem crendo em ambos desde os primeiros tempos da história da igreja. Mas um entendimento preciso de como a plena divindade e a plena humanidade poderiam ser combinadas em uma pessoa só foi formulado gradualmente na igreja e não chegou à forma final antes da Definição de Calcedônia em 451 d.C.

1. Três concepções inadequadas da pessoa de Cristo

a. O apolinarismo. Apolinário, que se tornou bispo em Laodicéia em cerca de 361 a.C., ensinava que a pessoa única de Cristo possuía um corpo humano, mas não uma mente ou um espírito humano, e que a mente e o espírito de Cristo provinham da natureza divina do Filho de Deus.
b. O nestorianismo. O nestorianismo é a doutrina de que havia duas pessoas distintas em Cristo, uma pessoa humana e outra divina, ensino diferente da idéia bíblica que vê Jesus como uma só pessoa.
c. O monofisismo (eutiquianismo). Uma terceira concepção inadequada é chamada monofisismo, a idéia de que Cristo possuía só uma natureza (gr. monos, “um”, e physis, “natureza”). O primeiro defensor dessa idéia na igreja primitiva foi Êutico (c. 378-454 d.C.), líder de um mosteiro em Constantinopla. Êutico ensinava o erro oposto do nestorianismo, pois negava que as naturezas humana e divina em Cristo permanecessem plenamente humana e plenamente divina.

2. A solução da controvérsia:

A definição de Calcedônia em 451 d.C.  Para tentar resolver os problemas levantados pelas controvérsias em torno da pessoa de Cristo, convocou-se um amplo concílio eclesiástico na cidade de Calcedônia, perto de Constantinopla (atual Istambul), realizado de 8 de outubro a 1.o de novembro de 451. A declaração resultante, chamada Definição de Calcedônia, previne contra o apolinarismo, o nestorianismo e o eutiquianismo. Ela tem sido tomada desde então como a definição padrão, ortodoxa, do ensino bíblico sobre a pessoa de Cristo igualmente pelos ramos católicos, protestantes e ortodoxos do cristianismo.

3. Agrupamento de textos bíblicos específicos sobre a divindade e a humanidade de Cristo.

Quando examinamos o Novo Testamento, conforme fizemos acima nas seções sobre a humanidade e a divindade de Jesus, há algumas passagens que parecem difíceis de encaixar. (Como Jesus podia ser onipotente e ainda assim fraco? Como podia deixar o mundo e ainda estar presente em todos os lugares? Como podia aprender coisas e ainda ser onisciente?)
a. Uma natureza faz algumas coisas que a outra não faz. Teólogos evangélicos de gerações anteriores não hesitaram em fazer distinção entre coisas feitas pela natureza humana de Cristo, mas não pela natureza divina, ou pela natureza divina, mas não pela humana. Parece que temos de fazer isso se quisermos reafirmar a declaração de Calcedônia de que “é preservada a propriedade de cada natureza”. Mas poucos teólogos recentes dispõem-se a fazer tal distinção, talvez por causa de uma hesitação em afirmar algo que não conseguimos compreender.
b. Tudo o que uma das naturezas faz, a pessoa de Cristo faz. Na seção anterior mencionamos uma série de coisas feitas por uma natureza, mas não pela outra na pessoa de Cristo. Agora precisamos afirmar que tudo o que diz respeito à natureza humana ou divina de Cristo diz respeito à pessoa de Cristo. Assim Jesus pode dizer: “antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58). Ele não diz: “Antes que Abraão existisse, minha natureza humana existia”, porque ele é livre para falar de qualquer coisa feita só por sua natureza divina ou só por sua natureza humana como algo feito por ele.
c. Títulos que nos lembram de uma natureza podem ser empregados em referência à pessoa, mesmo quando a ação é realizada pela outra natureza. Os autores do Novo Testamento às vezes empregam títulos que nos lembram ou da natureza humana ou da natureza divina para falar da pessoa de Cristo, ainda que a ação mencionada possa ter sido realizada apenas pela outra natureza e não pela que pareça estar implicada no título. Por exemplo, Paulo diz que se os governantes deste mundo tivessem compreendido a sabedoria de Deus, “jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8).
d. Uma breve frase de resumo. Às vezes no estudo da teologia sistemática, a seguinte frase tem sido empregada para resumir a encarnação: “Permanecendo o que era, tornou-se o que não era”. Em outras palavras, enquanto Jesus “permanecia” o que era (ou seja, plenamente divino), ele também se tornou o que não fora antes (ou seja, também plenamente humano). Jesus não deixou nada de sua divindade quando se tornou homem, mas assumiu a humanidade que antes não lhe pertencia.
e. A “comunicação” de atributos. Depois de decidirmos que Jesus era plenamente homem e plenamente Deus, e que sua natureza humana permaneceu plenamente humana e sua natureza divina permaneceu plenamente divina, podemos ainda perguntar se algumas qualidades ou capacidades foram dadas (ou “comunicadas”) de uma natureza a outra. Parece que a resposta é sim.
(1) Da natureza divina para a natureza humana
Ainda que a natureza humana de Jesus não tenha mudado em seu caráter essencial, porque ela foi unida à natureza divina na pessoa única de Cristo, a natureza humana de Jesus obteve (a) dignidade para ser cultuada e (b) incapacidade de pecar, elementos que não pertencem, de outra maneira, aos seres humanos.
(2) Da natureza humana para a natureza divina
A natureza humana de Jesus lhe deu (a) a capacidade de experimentar o sofrimento e a morte; (b) a capacidade de ser nosso sacrifício substitutivo, o que Jesus, só como Deus, não poderia ter feito.
f. Conclusão. Ao final desta longa discussão, pode-nos ser fácil perder de vista o que de fato é ensinado nas Escrituras. Trata-se, de longe, do milagre mais maravilhoso de toda a Bíblia — muito mais maravilhoso que a ressurreição e até que a criação do universo. O fato de o Filho de Deus, infinito, onipresente e eterno tornar-se homem e unir-se para sempre a uma natureza humana, de modo que o Deus infinito se tornasse uma só pessoa com o homem finito, permanecerá pela eternidade como o mais profundo milagre e o mais profundo mistério em todo o universo.

 

A Expiação

Podemos definir a expiação como segue: expiação é a obra que Cristo realizou em sua vida e morte para obter nossa salvação. Essa definição indica que usamos a palavra expiação num sentido mais amplo em que às vezes é utilizada. Ela é empregada de vez em quando para se referir apenas ao fato de Jesus morrer e pagar nossos pecados na cruz. 

V. Os Ofícios de Cristo

Os três cargos mais importantes que poderiam existir para o povo de Israel no Antigo Testamento eram: o profeta (como Natã, 2Sm 7.2), o sacerdote (como Abiatar, 1Sm 30.7) e o rei (como Davi, 2Sm 5.3). Esses três ofícios eram distintos. O profeta falava as palavras de Deus ao povo; o sacerdote oferecia sacrifícios, orações e louvores a Deus em favor do povo; e o rei governava o povo como representante de Deus. Esses três ofícios prefiguravam a própria obra de Cristo de várias maneiras.

A. CRISTO COMO PROFETA

Os profetas do Antigo Testamento transmitiam a palavra de Deus ao povo. Moisés foi o primeiro grande profeta e escreveu os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco. Depois vieram outros que falaram e escreveram as palavras de Deus. Mas Moisés predisse que um dia viria outro profeta como ele.

B. CRISTO COMO SACERDOTE

No Antigo Testamento, os sacerdotes eram designados por Deus para oferecer sacrifícios. Eles também ofereciam orações e louvores a Deus em favor do povo. Ao agir assim “santificavam” as pessoas, ou tornavam-nas aceitáveis à presença de Deus, se bem que de forma limitada durante o período do Antigo Testamento. No Novo Testamento, Jesus tornou-se nosso grande sumo sacerdote. Esse tema é bem desenvolvido na carta aos Hebreus, na qual vemos que Jesus atua como sacerdote de duas maneiras.

1. Jesus ofereceu um sacrifício perfeito pelo pecado.

O sacrifício que Jesus ofereceu pelos pecados não foi o sangue de animais como touros ou bodes: “... porque é impossível que o sangue de touros e bodes remova pecados” (Hb 10.4). Em vez disso, Jesus ofereceu a si mesmo como sacrifício perfeito: “... ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26).

2. Jesus nos aproxima continuamente de Deus.

Os sacerdotes do Antigo Testamento não apenas apresentavam sacrifícios, mas também compareciam de modo representativo na presença de Deus, de tempos em tempos, em favor do povo. Mas Jesus faz muito mais do que isso. Como nosso perfeito sumo sacerdote, ele continuamente nos conduz à presença de Deus, de forma que não temos mais a necessidade de um templo em Jerusalém nem de um sacerdócio especial que se coloque entre nós e Deus.

3. Como sacerdote, Jesus ora continuamente por nós.

Outra função sacerdotal no Antigo Testamento era orar a favor das pessoas. O autor de Hebreus nos diz que Jesus também cumpre essa função: “... também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). Paulo afirma a mesma coisa quando diz que Cristo Jesus é aquele que intercede por nós (Rm 8.34).

C. CRISTO COMO REI

No Antigo Testamento o rei tinha autoridade para governar a nação de Israel. No Novo Testamento, Jesus nasceu para ser o Rei dos judeus (Mt 2.2), mas recusou todas as tentativas feitas pelo povo para fazê-lo um rei terreno com um poder militar e político terreno (Jo 6.15). Ele disse a Pilatos: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36).

D. NOSSO PAPEL COMO PROFETAS, SACERDOTES E REIS.

Se olharmos para a situação de Adão antes da queda e para a nossa situação futura com Cristo no céu por toda a eternidade, poderemos ver que esses papéis de profeta, sacerdote e rei têm paralelo com a experiência que Deus originariamente pretendia que o homem tivesse e serão cumpridos na nossa vida no céu.

VI. A EXPIAÇÃO DE CRISTO

Qual foi a causa última que levou Cristo a vir para este mundo e morrer pelos nossos pecados? Para encontrá-la, devemos pesquisar o assunto em alguma coisa no caráter do próprio Deus. E aqui as Escrituras apontam para duas coisas: o amor e a justiça de Deus.
O amor de Deus como uma das causas da expiação é descrito na passagem mais conhecida da Bíblia: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Mas a justiça de Deus também exigia que ele encontrasse um meio pelo qual a pena pelos nossos pecados fosse paga (pois ele não podia aceitar-nos em comunhão consigo mesmo a menos que a penalidade fosse paga).

 A NECESSIDADE DE EXPIAÇÃO

Havia alguma outra maneira de Deus salvar os seres humanos além de enviar seu Filho para morrer em nosso lugar?
Antes de responder a essa pergunta, é importante entender que Deus não tinha nenhuma necessidade de salvar ninguém. Quando nos conscientizamos de que “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4), percebemos que Deus poderia também ter escolhido com perfeita justiça deixar-nos em nossos pecados, esperando o julgamento; ele poderia ter escolhido não salvar ninguém, assim como fez com os anjos pecaminosos. Assim, nesse sentido a expiação não era absolutamente necessária.

A NATUREZA DA EXPIAÇÃO

Nesta seção, considero dois aspectos da obra de Cristo: (1) a obediência de Cristo por nós, pela qual obedeceu às exigências da lei em nosso lugar e foi perfeitamente obediente à vontade de Deus Pai como nosso representante, e (2) os sofrimentos de Cristo por nós, pelos quais recebeu o castigo pelos nossos pecados e, em conseqüência, morreu pelos nossos pecados.

1. A obediência de Cristo por nós (às vezes chamada “obediência ativa”).

Se Cristo tivesse conseguido só o perdão dos pecados por nós, não mereceríamos o céu. Nossa culpa teria sido removida, mas estaríamos simplesmente na posição de Adão e Eva antes de terem feito qualquer coisa boa ou má e antes de terem passado um tempo de provação com sucesso. Para serem estabelecidos em justiça para sempre e ter assegurada a sua eterna comunhão com Deus, Adão e Eva tinham de obedecer a Deus de modo perfeito por um período de tempo. Então, Deus teria olhado para sua obediência fiel com prazer e deleite, e eles teriam vivido em comunhão com o Senhor para sempre.

2. Os sofrimentos de Cristo por nós (às vezes chamados “obediência passiva”).

Além de obedecer à lei de modo perfeito por toda a sua vida em nosso favor, Cristo tomou também sobre si mesmo os sofrimentos necessários para pagar a penalidade pelos nossos pecados.
a. Sofrimento por toda a sua vida. Num sentido mais amplo a pena que Cristo suportou ao pagar nossos pecados foi um sofrimento tanto em seu corpo como em sua alma ao longo da vida. Embora os sofrimentos de Cristo tenham culminado em sua morte sobre a cruz (veja abaixo), toda a sua vida num mundo caído envolveu sofrimento. Por exemplo, Jesus suportou tremendo sofrimento durante a tentação no deserto (Mt 4.1-11), quando foi submetido por quarenta dias aos ataques de Satanás. 
b. A dor da cruz. Os sofrimentos de Jesus se intensificaram à medida que ele se aproximava da cruz. Ele compartilhou com os discípulos algo da agonia que estava vivendo quando disse: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38). Foi especialmente sobre a cruz que os sofrimentos de Jesus por nós atingiram seu clímax, pois foi ali que ele suportou o castigo pelo nosso pecado e morreu em nosso lugar. As Escrituras nos ensinam que havia quatro diferentes aspectos da dor que Jesus experimentou:
(1) Dor física e morte
Não precisamos sustentar que Jesus sofreu mais dor física do que qualquer ser humano jamais sofreu, pois em nenhuma passagem a Bíblia faz tal alegação. Mas ainda não podemos esquecer que a morte por crucificação era uma das formas mais horríveis de execução que o homem já inventou..
(2) A dor de carregar o pecado
Mais horrível que a dor do sofrimento físico que Jesus suportou foi a dor psicológica de carregar a culpa pelo nosso pecado. Em nossa própria experiência como cristãos conhecemos um pouco da angústia que sentimos quando sabemos que pecamos. O peso da culpa nos oprime o coração, e há um amargo sentimento de separação de tudo que é correto no universo, uma consciência de algo que num sentido bem profundo não devia existir. Na verdade, quanto mais crescemos em santidade como filhos de Deus, sentimos de modo mais intenso essa repugnância instintiva diante do mal.
(3) Abandono
A dor física da crucificação e a dor de carregar sobre si mesmo o mal absoluto de nossos pecados foram agravadas pelo fato de Jesus ter enfrentado essa dor sozinho. No Getsêmani, quando Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, confidenciou-lhes um pouco de sua agonia: “A minha alma está profundamente triste até à morte; ficai aqui e vigiai” (Mc 14.34). Esse é o tipo de confidência que se faz a um amigo íntimo e implica um pedido de apoio em sua hora da maior provação. Porém, quando Jesus foi preso, “os discípulos todos, deixando-o, fugiram” (Mt 26.56).
(4) A dor de suportar a ira de Deus
Mais difícil ainda que esses três aspectos da dor de Jesus foi a dor de suportar sobre si a ira de Deus. Como Jesus carregava sozinho a culpa de nossos pecados, Deus Pai, o poderoso Criador, o Senhor do universo, derramou sobre ele a fúria de sua ira: Jesus se tornou objeto do intenso ódio e da vingança contra o pecado que Deus tinha guardado com paciência desde o início do mundo.
c. Outras reflexões sobre a morte de Cristo
(1) O castigo foi infligido por Deus Pai
Se perguntarmos “Quem exigiu que Cristo pagasse a pena pelos nossos pecados?”, a resposta dada pelas Escrituras é que o castigo foi aplicado por Deus Pai como representante dos interesses da Trindade na redenção. Foi a justiça de Deus que exigiu que o pecado fosse pago, e, entre os membros da Trindade, era Deus Pai quem tinha o papel de exigir esse pagamento. Deus Filho voluntariamente assumiu o papel de suportar o castigo pelo pecado.
(2) Não um sofrimento eterno, mas um pagamento integral
Se tivéssemos de pagar a pena de nossos próprios pecados, teríamos de sofrer eternamente separados de Deus.  Porém, Jesus não sofreu eternamente. Existem duas razões para essa diferença:
(a)          Se sofrêssemos pelos nossos próprios pecados, nunca seríamos capazes de nos colocar novamente em condição correta com Deus por nós mesmos. Não haveria nenhuma esperança, pois não poderíamos viver de novo e conseguir justiça perfeita diante de Deus, e não haveria nenhum modo de desfazer nossa natureza pecaminosa e torná-la justa diante de Deus.
(b)          Jesus era capaz de receber toda a ira de Deus contra nosso pecado e sofrê-la até o fim. Nenhum homem comum poderia jamais fazer isso, mas em virtude da união das naturezas divina e humana em sua pessoa, Jesus era capaz de receber toda a ira de Deus contra o pecado e sofrê-la até o fim. Isaías predisse que Deus “verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito” (Is 53.11).
(3) O significado do sangue de Cristo
O Novo Testamento muitas vezes liga o sangue de Cristo com nossa redenção. Por exemplo, Pedro diz: “... sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.18-19).
(4) A morte de Cristo como “substituição penal”
A concepção da morte de Cristo apresentada aqui tem sido chamada com freqüência a teoria da “substituição penal”. A morte de Cristo foi “penal” pelo fato de ter ele cumprido uma pena quando morreu. Sua morte foi também uma “substituição” pelo fato de ter ele sido nosso substituto quando morreu.
d. Termos do Novo Testamento que descrevem diferentes aspectos da expiação. A obra expiatória de Cristo é um evento complexo que tem vários efeitos sobre nós. O Novo Testamento usa diferentes palavras para descrevê-los; vamos examinar quatro termos mais importantes. Eles mostram como a morte de Cristo atendeu a quatro necessidades que temos como pecadores:
(1) Sacrifício
Para pagar a pena de morte que merecemos por causa de nossos pecados, Cristo morreu como sacrifício por nós. Ele “se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26).
(2) Propiciação
Para nos livrar da ira de Deus que merecemos, Cristo morreu como propiciação pelos nossos pecados. “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10).
(3) Reconciliação
Para vencer a nossa separação de Deus, precisávamos de alguém que proporcionasse reconciliação e dessa forma nos trouxesse de volta à comunhão com Deus. Paulo diz que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18-19).
(4) Redenção
Uma vez que como pecadores estamos escravizados ao pecado e a Satanás, precisamos de alguém que nos proporcione redenção e, dessa forma, nos “redima” de nossa servidão. Quando falamos em redenção, entra em foco a idéia de “resgate”. Resgate é o preço pago para redimir alguém da escravidão ou cativeiro. Jesus disse de si mesmo: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).
e. Outras concepções da expiação. Em contraste com a concepção da substituição penal da expiação apresentada neste capítulo, vários outros pontos de vista têm sido defendidos na história da igreja.
(1) A teoria do resgate pago a Satanás
Essa visão foi sustentada por Orígenes (c. 185 – c. 254 d.C.), teólogo de Alexandria e mais tarde de Cesaréia, e depois dele por alguns outros na história antiga da igreja. De acordo com esse ponto de vista, o resgate que Cristo pagou para nos redimir foi dado a Satanás, em cujo reino se encontravam todas as pessoas devido ao pecado.
(2) A teoria da influência moral
Defendida pela primeira vez por Pedro Abelardo (1079-1142), teólogo francês, a teoria da influência moral da expiação sustenta que Deus não exige o pagamento de um castigo pelo pecado, mas que a morte de Cristo era simplesmente um modo pelo qual Deus mostrou o quanto amava os seres humanos ao identificar-se, até a morte, com os sofrimentos deles. A morte de Cristo, portanto, torna-se um grande exemplo didático que mostra o amor de Deus por nós, amor que nos extrai uma resposta agradecida, de modo que somos perdoados ao amá-lo.
(3) A teoria do exemplo
A teoria do exemplo da expiação foi ensinada pelos socinianos, seguidores de Fausto Socino (1539-1604), teólogo italiano que se estabeleceu na Polônia em 1578 e atraiu grande número de adeptos. A teoria do exemplo, à semelhança da teoria da influência moral, também nega que a justiça de Deus exija castigo pelo pecado; diz que a morte de Cristo simplesmente nos provê de exemplo de como devemos confiar em Deus e obedecer-lhe de modo perfeito, mesmo que essa confiança e obediência nos levem a uma morte horrível.
(4) A teoria governamental
A teoria governamental da expiação foi ensinada pela primeira vez por um teólogo e jurista holandês, Hugo Grotius (1583-1645). Essa teoria sustenta que Deus não tinha realmente de exigir castigo pelo pecado, mas, uma vez que ele era Deus onipotente, poderia deixar de lado essa exigência e simplesmente perdoar os pecados sem o pagamento de uma pena. Nesse caso, qual foi o propósito da morte de Cristo? Foi a demonstração divina do fato de que suas leis foram infringidas, que ele é o legislador moral e governador do universo e que alguma espécie de pena seria exigida sempre que suas leis fossem infringidas. Dessa forma, Cristo não paga a pena exatamente pelos pecados concretos de alguém, mas apenas sofreu para mostrar que quando as leis de Deus são quebradas alguma espécie de pena deve ser paga.
De novo, o problema com essa visão é que ela falha em explicar de modo adequado todas as passagens bíblicas que falam em Cristo carregando nossos pecados sobre a cruz, em Deus lançando sobre Cristo a iniqüidade de nós todos, em Cristo morrendo especificamente pelos nossos pecados e em Cristo sendo a propiciação pelos nossos pecados. Além disso, ela retira o caráter objetivo da expiação por tornar o seu propósito não a satisfação da justiça de Deus, mas apenas a influência sobre nós a fim de nos fazer perceber que Deus tem leis que devem ser guardadas. Essa concepção implica também que não podemos confiar de modo correto na obra completa de Cristo quanto ao perdão dos pecados, pois de fato não foram pagos por ele. Além do mais, ela faz com que a conquista efetiva do perdão por nós seja algo que aconteceu na mente do próprio Deus à parte da morte de Cristo sobre a cruz — ele já tinha decidido nos perdoar sem exigir de nós nenhum castigo e então puniu Cristo apenas para demonstrar que ainda era o governador moral do universo. Mas isso significa que Cristo (segundo esse ponto de vista) não conquistou de fato o perdão por nós, e assim o valor de sua obra redentora é reduzido de maneira drástica. Por fim, essa teoria não explica de maneira adequada a imutabilidade de Deus e a infinita pureza de sua justiça. Dizer que Deus pode perdoar pecados sem exigir nenhum castigo (a despeito do fato de que através das Escrituras o pecado sempre requer o cumprimento de uma pena) é subestimar seriamente o caráter absoluto da justiça de Deus.
f. Teria Cristo descido ao inferno? Argumenta-se às vezes que Cristo desceu ao inferno depois de morrer. A frase “desceu ao inferno” não aparece na Bíblia. Mas o Credo Apostólico, amplamente usado, diz: “foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao inferno; e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos”. Isso significa que Cristo suportou mais sofrimentos após sua morte na cruz? Como veremos abaixo, um exame dos indícios bíblicos indica que não. Mas antes de examinar os textos bíblicos relevantes, deve-se analisar a frase “desceu ao inferno” do Credo Apostólico.
(1) A origem da frase “desceu ao inferno”
Antecedentes obscuros encontram-se por trás de grande parte da história da frase em si. Suas origens, quando podem ser identificadas, estão bem longe de serem louváveis. O grande historiador eclesiástico Philip Schaff resumiu o desenvolvimento do Credo Apostólico num extenso diagrama, parte do qual reproduzimos nas p. 486-488. 
(2) Possível apoio bíblico para a descida ao inferno
O apoio para a idéia de que Cristo desceu ao inferno encontra-se principalmente em cinco passagens: Atos 2.27; Romanos 10.6-7; Efésios 4.8-9; 1Pedro 3.18-20 e 1Pedro 4.6. (Tem-se recorrido também a poucas outras passagens, mas de maneira menos convincente.). Numa análise mais detida, será que alguma dessas passagens sustenta claramente esse ensino?
(a) Atos 2.27. Isso faz parte do sermão de Pedro no dia de Pentecostes, onde ele cita Salmos 16.10. Na versão King James, o versículo diz: “porque não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”.
(b) Romanos 10.6-7. Esses versículos contêm duas perguntas retóricas, de novo citações do Antigo Testamento (de Dt 30.13): “Quem subirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos”.
(c) Efésios 4.8-9. Aqui Paulo escreve: “... que quer dizer subiu, senão que também havia descido às regiões inferiores da terra?” Isso significa que Cristo “desceu” ao inferno? À primeira vista não fica claro o que significa “às regiões inferiores da terra”, mas outra tradução parece dar o melhor sentido: “Que quer dizer ‘ele subiu’, senão que também desceu às regiões terrenas inferiores?”
(d) 1Pedro 3.18-20. Para muitos, essa é a passagem mais intrigante em todo o assunto. Pedro diz que Cristo foi “morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca”.
Isso falaria de Cristo pregando no inferno?
Alguns entendem que “foi e pregou aos espíritos em prisão” significa que Cristo foi ao inferno e pregou aos espíritos que ali estavam — ou proclamando o evangelho e oferecendo uma segunda oportunidade de arrependimento, ou só proclamando que havia triunfado sobre eles e que estavam eternamente condenados.
Isso falaria de Cristo pregando a anjos decaídos?
Para dar uma explicação melhor a essas dificuldades, alguns comentaristas propõem que se entenda “espíritos em prisão” como espíritos demoníacos, os espíritos dos anjos decaídos, dizendo que Cristo proclamou condenação a esses demônios. Isso (alegam) consolaria os leitores de Pedro, mostrando-lhes que as forças demoníacas que os oprimiam também seriam derrotadas por Cristo.
Isso falaria de Cristo proclamando libertação aos santos do Antigo Testamento?
Outra explicação é que Cristo, após sua morte, foi proclamar libertação aos crentes do Antigo Testamento que não tinham conseguido entrar no céu antes que se completasse a obra redentora de Cristo.
Uma explicação mais satisfatória
A explicação mais satisfatória de 1Pedro 3.19-20 parece aquela proposta (mas não de fato defendida) por Agostinho: a passagem refere-se não a algo que Cristo fez entre sua morte e ressurreição, mas ao que fez “no âmbito espiritual da existência” (ou “pelo Espírito”) nos dias de Noé. Quando Noé estava construindo a arca, Cristo “em espírito” estava pregando por meio de Noé aos incrédulos hostis em torno dele.
(3) Oposições bíblicas a uma descida ao inferno
Acrescentando-se ao fato de haver pouco ou nenhum apoio bíblico para a descida de Cristo ao inferno, há alguns textos do Novo Testamento que argumentam contra a possibilidade de Cristo ter ido ao inferno após sua morte.
As palavras de Jesus ao ladrão na cruz: “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43), implicam que depois de sua morte, a alma (ou espírito) de Jesus foi imediatamente à presença do Pai no céu, ainda que seu corpo permanecesse sobre a terra, sendo sepultado.
(4) Conclusão a respeito do Credo Apostólico e da questão da possível descida de Cristo ao inferno
Será que a frase “desceu ao inferno” merece ser mantida no Credo Apostólico, junta-mente com as grandes doutrinas da fé com que todos concordamos? O único argumento em seu favor parece o fato de estar ali há muito tempo. Mas um erro antigo continua sendo um erro — e durante todo o tempo em que ali tem estado, tem trazido confusão e desavenças quanto ao seu significado.

A AMPLITUDE DA EXPIAÇÃO

Uma das diferenças entre teólogos reformados e outros teólogos católicos e protestantes tem sido a questão da amplitude da expiação. A questão pode ser colocada da seguinte maneira: quando Cristo morreu, pagou os pecados de toda a raça humana ou só os pecados dos que, ele sabia, seriam por fim salvos?

1. Passagens bíblicas empregadas para sustentar a concepção reformada.

Algumas passagens das Escrituras falam do fato de que Cristo morreu por seu povo. “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11). “Dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10.15). Paulo fala da “igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). Ele também diz: “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32).

2. Passagens bíblicas empregadas para sustentar a concepção não-reformada (redenção geral ou expiação ilimitada).

Algumas passagens das Escrituras indicam que em algum sentido Cristo morreu por todo o mundo. João Batista disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). E João 3.16 nos diz que “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Jesus disse: “O pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (Jo 6.51).

3. Alguns pontos pacíficos e algumas conclusões sobre textos polêmicos.

Seria bom primeiro alistar os pontos sobre os quais ambos os lados concordam:
1. Nem todos serão salvos.
2. É correto que se ofereça gratuitamente o evangelho a todas as pessoas. É completamente verdadeiro que “quem desejar” pode chegar a Cristo e obter a salvação, e ninguém que chegar a ele será lançado fora. Essa oferta gratuita do evangelho é estendida em boa fé para todas as pessoas.
3. Todos concordam que a própria morte de Cristo, por ser ele o infinito Filho de Deus, possui mérito infinito, sendo em si suficiente para pagar a penalidade dos pecados dos muitos ou dos poucos que o Pai e o Filho decretaram. A questão não está nos méritos intrínsecos dos sofrimentos e da morte de Cristo, mas no número de pessoas pelas quais o Pai e o Filho entenderam, no momento da morte de Cristo, que sua morte seria pagamento suficiente.
4. Pontos de esclarecimento e cautela a respeito dessa doutrina. É importante expor alguns pontos de esclarecimento e também algumas áreas em que podemos objetar com justiça contra a maneira pela qual alguns defensores da redenção particular expressam seus argumentos. É também importante perguntar as implicações pastorais desse ensino.












REFERENCIA BIBLIOGAFICA



GRUDEM Wayne. Teologia Sistemática. Ed Vida Nova


LANGSTON, A.B. Esboço de Teologia Sistemática, JUERP, Rio de Janeiro 2000.