DOUTRINA DA BÍBLIA (Bibliologia)


A. O significado de inerrância

Não vamos repetir aqui os argumentos a respeito da autoridade das Escrituras apresentados no capítulo 4. Afirmou-se ali que todas as palavras na Bíblia são palavras de Deus e que, portanto, não crer em alguma palavra das Escrituras ou não obedecer a ela é não crer em Deus ou desobedecer a ele. Afirmou-se ainda que a Bíblia ensina claramente que Deus não pode mentir nem falar com falsidade (2Sm 7.28; Tt 1.2; Hb 6.18). Assim, todas as palavras nas Escrituras são declaradas completamente verdadeiras e destituídas de erros, qualquer que seja o trecho (Nm 23.19; Sl 12.6; 119.89, 96; Pv 30.5; Mt 24.35). As palavras de Deus são, de fato, o padrão máximo da verdade (Jo 17.17).
Deve-se reconhecer que a fidedignidade absoluta no discurso é coerente com alguns outros tipos de declaração, tais como as seguintes:

1. A Bíblia pode ser inerrante e mesmo assim empregar a linguagem comum da fala cotidiana.

Isso diz respeito principalmente às descrições “científicas” ou “históricas” de fatos ou eventos. A Bíblia pode falar que o sol nasce e a chuva cai porque, pela ótica de quem fala, é exatamente isso que ocorre. Da perspectiva de um observador postado no sol (caso fosse possível) ou em algum ponto “fixo” hipotético no espaço, a terra gira trazendo o sol ao campo visual, e a chuva não cai só de cima para baixo, como também de um lado para outro ou de baixo para cima, de acordo com a direção necessária para que seja conduzida pela gravidade até a superfície da terra. Mas essas explicações são irremediavelmente pedantes e impossibilitariam a comunicação normal. De acordo com a perspectiva de quem fala, o sol nasce e a chuva cai, e essas palavras descrevem com perfeita veracidade os fenômenos naturais observados por quem fala.

2. A Bíblia pode ser inerrante e mesmo assim conter citações vagas ou livres.

O jeito de uma pessoa citar as palavras de outra é um procedimento que, em grande parte, varia de cultura para cultura. Na cultura ocidental contemporânea, costumamos citar textualmente as palavras da pessoa quando as colocamos entre aspas (chamamos a isso citação direta). Mas quando empregamos a citação indireta (sem aspas), espera-se um relato preciso limitado apenas à essência da declaração. Considere a seguinte frase: “Elliot disse que logo estaria em casa para jantar”. A frase não faz uma citação direta de Elliot, mas é uma expressão aceitável e veraz do que Elliot disse ao pai: “Volto em dois minutos para comer”, apesar de a citação indireta não conter nenhuma das palavras originais dele.

3. É compatível com a inerrância haver construções gramaticais incomuns ou pouco usuais na Bíblia.

Algumas linguagens das Escrituras são elegantes e excelentes quanto ao estilo. Outros escritos bíblicos contêm a linguagem natural do povo comum. Às vezes isso inclui falhas em relação às “regras” aceitas de expressão gramatical (tais como o uso de um verbo no plural onde as regras gramaticais exigiriam um verbo no singular ou o emprego de um adjetivo feminino onde se espera um masculino ou de uma grafia diferente de uma palavra, etc.). Essas declarações irregulares quanto à estilística ou à gramática (encontradas especialmente no livro de Apocalipse) não nos devem incomodar, pois não afetam a fidedignidade das declarações em questão: uma declaração pode ser gramaticalmente incorreta e, ainda assim, inteiramente verdadeira.

B. Alguns desafios atuais para a inerrância

Nesta seção, examinamos as principais objeções em geral levantadas contra o conceito de inerrância.

1. A Bíblia é a única autoridade em questões de “fé e prática”.

Uma das objeções mais freqüentes é levantada pelos que dizem que o propósito das Escrituras é ensinar-nos só em áreas que dizem respeito à “fé e prática”, ou seja, em áreas diretamente relacionadas com nossa fé religiosa ou com nossa conduta ética. Essa posição abriria a possibilidade de declarações falsas nas Escrituras, por exemplo, em outras áreas, tais como em detalhes históricos secundários ou em fatos científicos — essas áreas, afirmam os que levantam as objeções, não dizem respeito ao propósito da Bíblia: instruir-nos quanto ao que devemos crer e como devemos viver.  Seus defensores muitas vezes preferem dizer que a Bíblia é “infalível”, mas hesitam em empregar a palavra inerrante.

2. O termo inerrância é um exagero.

 Pessoas que levantam essa segunda objeção dizem que o termo inerrância é exato demais e que no uso comum denota um tipo de precisão científica absoluta que não devemos atribuir às Escrituras. Além disso, os que fazem essa objeção observam que o termo inerrância não é empregado na própria Bíblia. Assim, é provável que seja um termo inadequado e que não devamos insistir nele.

3. Não possuímos manuscritos inerrantes; portanto, é ilusório falar de uma Bíblia inerrante.

Os que levantam essa objeção destacam o fato de que a inerrância sempre foi atribuída aos primeiros exemplares ou aos exemplares originais dos documentos bíblicos.  Mas nenhum deles sobreviveu: só temos cópias de cópias do que Moisés ou Paulo ou Pedro escreveram. De que serve, então, atribuir tamanha importância a uma doutrina que se aplica só a manuscritos que ninguém possui?

4. Em detalhes secundários, os escritores bíblicos “adaptaram” suas mensagens às idéias falsas correntes na época deles, afirmando ou ensinando tais idéias de modo incidental.

Essa objeção à inerrância é levemente diferente da que restringe a inerrância das Escrituras a questões de fé e prática, mas está associada a ela. Os que defendem essa posição alegam que seria muito difícil para os autores bíblicos se comunicarem com o povo de sua época, caso tentassem corrigir todas as informações históricas e científicas erradas em que acreditavam seus contemporâneos.

5. A inerrância superestima o aspecto divino das Escrituras e negligencia o aspecto humano.

Essa objeção mais geral é levantada pelos que alegam que os defensores da inerrância dão tanta ênfase ao aspecto divino das Escrituras, que subestimam o aspecto humano.
Aceita-se que a Bíblia possui um aspecto humano e outro divino e que precisamos dar a devida atenção a ambos. Entretanto, os que levantam essa objeção quase que invariavelmente insistem em que os aspectos verdadeiramente “humanos” das Escrituras devem incluir a presença de alguns erros nas Escrituras.

6. Há alguns erros evidentes na Bíblia.

Essa última objeção, de que há erros claros na Bíblia, é feita ou insinuada pela maior parte dos que negam a inerrância e, para muitos deles, a convicção de que realmente há erros nas Escrituras é um fator importante que os convence a questionar a doutrina da inerrância.

C. Problemas decorrentes da rejeição da inerrância

Os problemas advindos da rejeição da inerrância bíblica não são insignificantes e, quando compreendemos a magnitude desses problemas, somos encorajados não só a afirmar a inerrância, mas também a sua importância para a igreja. Alguns dos problemas mais sérios são aqui alistados.

1. Se rejeitarmos a inerrância, teremos de nos confrontar com um problema moral sério:

Podemos imitar a Deus e também mentir intencionalmente em questões secundárias? Isso se assemelha à discussão em resposta à quarta objeção acima, mas aqui se aplica não só aos que levantam essa objeção como também de maneira mais ampla a todos os que negam a inerrância. Efésios 5.1 nos diz que devemos ser imitadores de Deus. Mas uma negação da inerrância que ainda defenda que as palavras das Escrituras são inspiradas implica necessariamente que Deus nos falou inverdades intencionalmente em algumas de suas declarações menos centrais das Escrituras.

2. Se rejeitarmos a inerrância, começaremos a questionar se realmente podemos confiar em Deus em tudo que nos diz.

Uma vez convencidos de que Deus nos falou inverdades em algumas questões secundárias das Escrituras, vamos perceber que Deus é capaz de nos falar inverdades. Isso terá um efeito nocivo sobre nossa capacidade de aceitar a palavra de Deus e de confiar nele por completo ou de obedecer a ele plenamente no restante das Escrituras.

3. Se rejeitarmos a inerrância, em essência, estaremos fazendo de nossa mente humana um padrão de verdade mais elevado que a própria Palavra de Deus.

Empregamos nossa mente para julgar algumas seções da Palavra de Deus e anunciamos que estão erradas. Mas na prática isso significa que conhecemos a verdade com mais certeza e exatidão que a Palavra de Deus (ou que o próprio Deus), pelo menos nessas áreas. Tal procedimento, que faz de nossa mente um padrão mais elevado de verdade que a Palavra de Deus, está na raiz de todo pecado intelectual.

4. Se rejeitarmos a inerrância, precisaremos também dizer que a Bíblia está errada não apenas em detalhes secundários, mas também em algumas de suas doutrinas.

A negação da inerrância implica estarmos dizendo que o ensino da Bíblia sobre a natureza das Escrituras e sobre a veracidade e fidedignidade das palavras de Deus é também falso. Esses detalhes não são secundários, mas questões doutrinárias centrais nas Escrituras.

As Quatro Características das Escrituras

(2) Clareza
Qualquer pessoa que já tenha começado a ler a Bíblia seriamente percebe que algumas partes podem ser bem facilmente entendidas, enquanto outras parecem enigmáticas. Na verdade, bem no início da história da igreja Pedro já lembrava aos seus leitores que algumas partes das epístolas de Paulo eram de difícil compreensão: “Como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe 3.15-16). Precisamos admitir, portanto, que nem todas as partes das Escrituras podem ser compreendidas com facilidade.

A. A Bíblia freqüentemente afirma a sua própria clareza

A clareza da Bíblia e a responsabilidade dos crentes em geral de lê-la e compreendê-la são freqüentemente enfatizadas. Todo o povo de Israel deveria ser capaz de compreender as palavras das Escrituras, e compreendê-las bem o bastante para diligentemente ensiná-las aos filhos. Esse ensinamento certamente não seria mera memorização mecânica, destituída de compreensão, pois o povo de Israel deveria discutir as palavras das Escrituras sentado dentro de casa, nas atividades cotidianas, andando na rua, na hora de ir para a cama ou quando se levantasse de manhã.

B. As qualidades morais e espirituais necessárias para a correta compreensão

Os autores do Novo Testamento freqüentemente afirmam que a capacidade de compreender corretamente as Escrituras é mais moral e espiritual do que intelectual: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co 2.14; cf. 1.18-3.4; 2Co 3.14-16; 4.3-4, 6; Hb 5.14; Tg 1.5-6; 2Pe 3.5; cf. Mc 4.11-12; Jo 7.17; 8.43). Assim, embora os autores do Novo Testamento afirmem que a Bíblia em si está escrita claramente, afirmam também que não será compreendida corretamente por quem não se dispuser a receber os seus ensinamentos.

C. Definição de clareza das Escrituras

Para resumir essa matéria bíblica, podemos afirmar que a Bíblia é escrita de forma tal que todas as coisas necessárias para nossa salvação e para nossa vida e crescimento cristão encontram-se bem claramente expostas nas Escrituras. Embora os teólogos às vezes definam a clareza das Escrituras de modo mais estreito (dizendo, por exemplo, apenas que as Escrituras são claras no ensino do caminho da salvação), os muitos textos citados acima se aplicam a vários aspectos diferentes do ensino bíblico e não parecem sustentar nenhuma limitação com relação a temas sobre os quais se pode dizer que as Escrituras não falam claramente.

D. Por que as pessoas compreendem erradamente as Escrituras?
Durante a vida de Jesus, seus próprios discípulos às vezes demonstravam não compreender o Antigo Testamento e os próprios ensinamentos de Cristo (ver Mt 15.16; Mc 4.10-13; 6.52; 8.14-21; 9.32; Lc 18.34; Jo 8.27; 10.6). Embora às vezes isso se devesse ao fato de que eles simplesmente precisavam aguardar eventos futuros da história da redenção, especialmente da vida do próprio Cristo (ver Jo 12.16; 13.7; cf. Jo 2.22), também houve oportunidades em que isso se deveu à sua falta de fé ou dureza de coração (Lc 24.25).

E. O incentivo prático derivado dessa doutrina

A doutrina da clareza das Escrituras, portanto, tem uma implicação prática muito importante e em última instância bastante encorajadora. Ela nos diz que nos pontos em que há desacordo doutrinário ou ético (por exemplo, quanto ao batismo, à predestinação ou ao governo da igreja), só há duas causas possíveis dessas discordâncias:
(1)        de um lado, pode ser que estejamos buscando fazer afirmações sobre pontos em que as próprias Escrituras se calam. Nesses casos, devemos estar prontos a admitir que Deus não deu resposta à nossa dúvida, aceitando as diferenças de pontos de vista dentro da igreja. (Isso sempre ocorrerá em questões bem práticas, como os métodos de evangelização, os estilos de ensino bíblico ou o tamanho apropriado da igreja.)
(2)        Por outro lado, é possível que tenhamos cometido erros na nossa interpretação das Escrituras. Isso pode ter ocorrido porque as informações que usamos para decidir uma questão de interpretação eram imprecisas ou incompletas. Ou talvez porque haja alguma deficiência pessoal da nossa parte, como, por exemplo, orgulho pessoal, ganância, falta de fé, egoísmo ou mesmo dedicação insuficiente de tempo para ler e estudar as Escrituras com devoção.

F. O papel dos estudiosos

Diante disso, será que os estudiosos da Bíblia e aqueles dotados de conhecimento especializado de hebraico (para o Antigo Testamento) e grego (para o Novo Testamento) ainda têm algum papel a desempenhar? Certamente sim, e em pelo menos quatro áreas:
1. Eles podem ensinar claramente as Escrituras, transmitindo o seu conteúdo aos outros e assim desempenhando o ofício de “mestre” mencionado no Novo Testamento (1Co 12.28; Ef 4.11).
2. Podem examinar novos campos de compreensão dos ensinamentos das Escrituras.
Esse exame raramente (se tanto) envolverá negação dos ensinamentos centrais que a igreja vem sustentando ao longos dos séculos, mas muitas vezes implicará a aplicação das Escrituras a novos aspectos da vida, respostas a perguntas difíceis suscitadas tanto por crentes quanto por descrentes a cada novo período da história e a contínua atividade de aperfeiçoamento e aprimoramento da compreensão da igreja acerca de pontos específicos da interpretação de determinados versículos ou questões doutrinárias ou éticas.
3. Podem defender os ensinamentos da Bíblia contra os ataques de outros estudiosos ou de pessoas dotadas de conhecimento técnico especializado. O papel de ensinar a Palavra de Deus às vezes implica também corrigir falsos ensinos. O cristão precisa ser capaz não só de “exortar pelo reto ensino” mas também de “convencer os que o contradizem” (Tt 1.9; cf. 2Tm 2.25, “disciplinando com mansidão os que se opõem”; e Tt 2.7-8).
4. Podem complementar o estudo das Escrituras em prol da igreja. Os estudiosos bíblicos muitas vezes têm treinamento que lhes permite associar os ensinamentos das Escrituras à rica história da igreja e tornar mais precisa a interpretação das Escrituras e mais vívido o seu significado com um maior conhecimento das línguas e culturas nas quais a Bíblia foi escrita.

As Quatro Características das Escrituras

(3) Necessidade
A necessidade das Escrituras pode ser definida assim: dizer que as Escrituras são necessárias significa dizer que a Bíblia é necessária para conhecer o evangelho, para conservar a vida espiritual e para conhecer a vontade de Deus, mas não que seja necessária para saber que Deus existe ou para saber algo sobre o caráter e sobre as leis morais de Deus.

A. A Bíblia é necessária para conhecer o evangelho

Em Romanos 10.13-17, Paulo diz:
Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? [...] E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo.
Essa declaração aponta para a seguinte linha de raciocínio: (1) primeiramente supõe que o homem precisa invocar o nome do Senhor para ser salvo. (Nos textos paulinos em geral, bem como nesse contexto específico [ver v. 9], “Senhor” se refere ao Senhor Jesus Cristo.) (2) As pessoas só podem invocar o nome de Cristo se crêem nele (ou seja, que ele é um Salvador digno de ser invocado e que atenderá aqueles que o invocarem). (3) As pessoas não podem crer em Cristo a menos que tenham ouvido falar dele. (4) Não ouvirão falar de Cristo a menos que alguém lhes fale sobre Cristo (alguém que “pregue”). (5) A conclusão é que a fé salvadora vem pelo ouvir (ou seja, ouvir a mensagem do evangelho), e esse ouvir a mensagem do evangelho vem pela pregação de Cristo. Aparentemente, a implicação é que sem ouvir a pregação do evangelho de Cristo, ninguém pode ser salvo.

B. A Bíblia é necessária para sustentar a fé espiritual

Diz Jesus em Mateus 4.4 (citando Dt 8.3): “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. Aqui Jesus indica que nossa vida espiritual é sustentada pela porção diária da Palavra de Deus, assim como nossa vida física é sustentada pela porção diária de alimento físico. Negligenciar a leitura regular da Palavra de Deus é tão prejudicial à saúde da nossa alma quanto o é à saúde do nosso corpo negligenciar o alimento físico.

C. A Bíblia é necessária para o conhecimento seguro da vontade de Deus

Abaixo se argumentará que todas as pessoas nascidas na terra têm algum conhecimento da vontade de Deus por intermédio da sua consciência. Mas esse conhecimento é muitas vezes indistinto e não pode proporcionar certeza. Na verdade, se não existisse a Palavra escrita de Deus, não poderíamos alcançar a certeza da vontade de Deus por nenhum outro meio, fosse consciência, conselhos de outras pessoas, testemunho íntimo do Espírito Santo, mudanças das circunstâncias ou o uso da razão e do bom senso santificados.

D. Mas a Bíblia não é necessária para saber que Deus existe

E as pessoas que não lêem a Bíblia? Será que podem obter algum conhecimento de Deus? Podem conhecer algo sobre as leis de Deus? Sim, mesmo sem a Bíblia é possível algum conhecimento de Deus, ainda que não seja conhecimento absolutamente seguro.
As pessoas podem obter o conhecimento de que Deus existe e de alguns dos seus atributos, simplesmente pela observação de si mesmas e do mundo que as cerca. Diz Davi: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19.1). Quem olha para o céu vê as provas do infinito poder, da infinita sabedoria e mesmo da infinita beleza de Deus; observa um majestoso testemunho da glória de Deus.

E. Além disso, a Bíblia não é necessária para conhecer algo sobre o caráter e sobre as leis morais de Deus

Paulo, em Romanos 1, mostra que até os descrentes que não têm nenhum registro escrito das leis de Deus mesmo assim têm na sua consciência alguma compreensão das exigências morais de Deus. Discorrendo sobre uma longa lista de pecados (“inveja, homicídio, contenda, dolo...”), Paulo fala sobre os ímpios que os praticam: “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem” (Rm 1.32). Os ímpios sabem que o seu pecado é errado, pelo menos na maior parte dos casos.

As Quatro Características das Escrituras

(4) Suficiência

A. Definição de suficiência das Escrituras

Podemos definir assim suficiência das Escrituras: dizer que as Escrituras são suficientes significa dizer que a Bíblia contém todas as palavras divinas que Deus quis dar ao seu povo em cada estágio da história da redenção e que hoje contém todas as palavras de Deus que precisamos para a salvação, para que, de maneira perfeita, nele possamos confiar e a ele obedecer.

B. Podemos encontrar tudo o que Deus disse sobre temas específicos e também respostas às nossas perguntas

Logicamente, temos consciência de que jamais obedeceremos perfeitamente a todas as palavras das Escrituras nesta vida (ver Tg 3.2; 1Jo 1.8-10; e o capítulo 24 abaixo). Portanto, de início pode não parecer muito significativo dizer que tudo o que temos de fazer é o que Deus nos ordena na Bíblia, pois de qualquer modo jamais seremos capazes de obedecer-lhe plenamente nesta vida.

C. A Veracidade das Escrituras

A essência da autoridade das Escrituras está na sua capacidade de nos compelir a crer nelas e a elas obedecer, fazendo que tal fé e obediência sejam equivalentes a fé e obediência ao próprio Deus. Por esse motivo, é necessário considerar a veracidade das Escrituras, pois crer em todas as palavras da Bíblia implica confiança na completa veracidade das Escrituras em que cremos. Esse assunto será discutido mais a fundo quando considerarmos a inerrância das Escrituras.

D. Aplicações práticas da suficiência das Escrituras

A doutrina da suficiência da Escrituras tem várias aplicações práticas na vida cristã. A seguinte lista se pretende útil, mas não exaustiva.

1. A suficiência das Escrituras deve-nos incentivar

A tentar descobrir aquilo que Deus quer que pensemos (sobre uma questão doutrinária específica) e façamos (numa dada situação). Devemos nos convencer de que tudo o que Deus quer nos dizer sobre essa questão se encontra nas Escrituras. Isso não significa que a Bíblia responde a todas as dúvidas que possamos conceber, pois “as coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus” (Dt 29.29).

2. A suficiência das Escrituras nos lembra de que não devemos acrescentar nada à Bíblia

Nem equiparar algum outro escrito à Bíblia. Esse princípio é violado por quase todas as seitas. Os mórmons, por exemplo, afirmam crer na Bíblia, mas também reclamam autoridade divina para O Livro de Mórmon. Os seguidores da Ciência Cristã, igualmente, afirmam crer na Bíblia, mas na prática equiparam às Escrituras o livro Science and Health With a Key to the Scriptures [Ciência e saúde com uma chave para as Escrituras], de Mary Baker Eddy, ou o colocam até acima da Bíblia em termos de autoridade. Como isso viola a ordem divina de nada acrescentar às suas palavras, não devemos pensar que encontraremos nessas obras mais palavras de Deus para nós.

3. A suficiência das Escrituras também nos diz que Deus não exige que creiamos em nada sobre si mesmo ou sobre sua obra redentora que não se encontre na Bíblia.

Entre os escritos do tempo da igreja primitiva acham-se algumas coleções de supostos dizeres de Jesus não preservados nos evangelhos. É provável que pelo menos alguns dos “dizeres de Jesus” encontrados nesses escritos sejam registros mais ou menos precisos de coisas que Jesus de fato falou (embora hoje nos seja impossível determinar com um grau elevado de probabilidade quais são esses dizeres).

4. A suficiência das Escrituras nos mostra que nenhuma revelação moderna de Deus deve ser equiparada à Bíblia no tocante à autoridade.

Em vários momentos ao longo da história, e especialmente no moderno movimento carismático, muitas pessoas já afirmaram que Deus transmitiu revelações por meio delas para benefício da igreja. Seja como for que avaliemos essas alegações, precisamos tomar o cuidado de jamais permitir (na teoria ou na prática) a equiparação dessas revelações às Escrituras.

5. Com respeito à vida cristã, a suficiência das Escrituras nos lembra de que não existe pecado que não seja proibido pelas Escrituras, quer explícita quer implicitamente.

 Andar na lei do Senhor é ser “irrepreensível” (Sl 119.1). Portanto, não devemos acrescentar proibições àquelas já afirmadas nas Escrituras.

6. A suficiência das Escrituras também nos diz que Deus nada exige de nós que não esteja determinado explícita ou implicitamente nas Escrituras.

Isso nos lembra que nossa busca da vontade de Deus deve-se concentrar nas Escrituras, ou seja, não devemos buscar orientação pelas orações que peçam alteração das circunstâncias ou dos sentimentos, ou ainda orientação direta do Espírito Santo fora das Escrituras.