EM TUDO UMA PORÇÃO DE TUDO

Fruto de uma ousadia intelectual que para existir requeria a libertação do jugo da tradição — para negá-la ou reinterpretá-la racionalmente —, a filosofia despontara, na Grécia, primeiro nas regiões periféricas, na Jônia ou na Magna
Grécia, nessas fronteiras políticas e culturais que separavam o mundo helênico de outros povos e outras tradições. Ali, em cidades-Estados mais recentes e dinâmicas questiona-se a mentalidade arcaica. Enquanto isso, a península grega desenvolvia-se política e socialmente alicerçada em valores que apenas indiretamente recebiam o influxo da novidade filosófica nascida nas colônias:
Atenas chegou à fase democrática sem ter gerado um único filósofo. E ainda perseguiu aquele que primeiro para lá se transferiu: Anaxágoras.
Nascido em Clazômena, aproximadamente em 500-496 a.C., Anaxágoras levou para Atenas as idéias novas que estavam sendo produzidas na Jônia. Em Atenas tornou-se amigo do grande líder político Péricles, mas nem essa amizade livrou-o do processo que acabou por forçá-lo a abandonar a cidade. Aos olhos dos atenienses, a novidade filosófica pareceu um escândalo e uma impiedade.
Historicamente começou com Anaxágoras o processo que Atenas moveu contra a filosofia e que concluirá, mais tarde, com a condenação à morte de Sócrates. Reformulando a linha de pensamento jônico, Anaxágoras escreveu, em prosa, uma obra que tentava como já o fizera Empédocles, conciliar a doutrina eleática de uma substância corpórea imutável com a existência de um mundo que apresenta a aparência do nascimento e da destruição. Para isso, logo nos primeiros fragmentos que restaram de seu livro (segundo a ordenação dada por Diels), Anaxágoras introduz a noção do infinitamente pequeno: "Todas as coisas estavam juntas, infinitas ao mesmo tempo em número e em pequenez, porque o pequeno era também infinito". Essa idéia, contrária à concepção da extensão no pitagorismo primitivo (que admitia a extensão como composta de unidades indivisíveis), torna-se fundamental na cosmogonia e na cosmologia de Anaxágoras. A tese de que "em cada coisa existe uma porção de cada coisa" sustenta-se na divisibilidade infinita.
O universo atual constitui-se, segundo Anaxágoras, a partir de um todo originário no qual todas as coisas estavam juntas e "nenhuma delas podia ser distinguida por causa de sua pequenez". O movimento e a diferenciação só surgem nesse conjunto aparentemente homogêneo devido à interferência do
Espírito (Nous). Mas, na verdade, o Nous é uma corporeidade sutil e sua ação é de natureza mecânica: move e separa os opostos (frio-quente, pesado-leve etc.) que inicialmente estavam juntos. Devido a essa ação é que surgem os seres diferenciados. A ação do Nous decorre de uma característica que lhe é peculiar: a imiscibilidade, que lhe garante a pureza. Afirma Anaxágoras: "Em todas as coisas há uma porção do Nous e há ainda certas coisas nas quais o Nous está também" Sobre uma matéria divisível ao infinito, o Nous exerce apenas uma função motora inicial (o que será criticado pelo Sócrates do Fédon de Platão), produzindo na mistura original composta por todas as coisas juntas um movimento rotatório, que se expande por razões meramente mecânicas e ocasiona o surgimento do universo. Todavia, "há coisas nas quais o Nous está também" — o que marcaria a distinção, para Anaxágoras, entre seres animados e seres inanimados. Dentre os seres animados, animais e vegetais, o homem se destaca como o mais sábio. Mas sua forma de conhecer não pode depender do Nous, que, sempre idêntico a si mesmo, é o mesmo em todos os seres animados.
A posição de Anaxágoras diante do problema do conhecimento revela então grande originalidade: os graus de inteligência manifestados pelos seres animados dependem não do Nous presente neles, mas da estrutura do corpo a que o Nous está ligado sem se misturar. Segundo o depoimento de Aristóteles,
Anaxágoras teria afirmado que "o homem pensa porque tem mãos", tese que mais tarde será combatida (inclusive pelo próprio Aristóteles), quando se intensificar, na sociedade grega, o preconceito contra o trabalho manual, geralmente atribuído a escravos